Passei três semanas de julho na Europa, entre o trabalho (pouco) e o descanso (a que reluto a me entregar). Ainda agora escrevo da Sardenha. Caminhando pelos pequenos portos da ilha, assim como pelos da Córsega, sentindo a placidez que ainda hoje envolve a vida dessa gente, não pude evitar a nostalgia pelo nunca vivido por nós metropolitanos. Nostalgia e inveja, mesmo sabendo, pela leitura apaixonante de Fernand Braudel, cujo livro sobre o Mediterrâneo carrego comigo, que a placidez atual mal esconde as agitações do passado, quando sarracenos, fenícios, normandos, gregos, romanos e toda gama de diferentes povos lutavam pela conquista do Mare Nostrum. As marcas de tudo isso estão esculpidas nos fortes, torres e casamatas que se espalham pela região, quando não pelas correntes que fechavam literalmente a entrada do porto de Bonifácio, uma fortificação erguida pelo Papa Bonifácio II, incumbido da defesa da Córsega, no final do século IX.
Naqueles tempos não havia o furor pela informação em tempo real. É verdade que a notícia de um ataque pirata a uma localidade entre Gênova e Split chegava a Nápoles em três horas, graças aos fogos que, nessas ocasiões, encarregados acendiam nas torres ao longo da costa de Portofino. Mas nenhuma informação, por certo, cruzaria rapidamente o Mediterrâneo de Chipre a Gibraltar, muito menos dali à costa brasileira do outro lado do Oceano Atlântico.
Hoje, não passa dia ou noite sem que o celular ou o e-mail perturbe a paz do pretendente ao sossego. Não há notícia, boa ou má, relevante ou não, que as tecnologias atuais e a ansiedade por comunicar “novidades” não façam chegar de imediato a quem deseje ou não dela saber.
Assim, tive minha tranquilidade entrecortada, não pela agitação dos mares, mas pelo lento e contínuo noticiário sobre o desmoronar de muito do que se construiu a partir da Constituição de 1988 no Brasil. A desagregação vem de longe, mas parece ter ricocheteado com mais força no mês de julho. Tornou-se claro para a opinião pública que a crise atual nada tem a ver com a “lá de fora”, e que ultrapassa o ridículo insistir em que a culpa é do FHC.
Tornou-se óbvio que há um acúmulo de crises: de crescimento, de desemprego, de funcionamento institucional, moral, de condução política. Tardiamente, círculos petistas se lembraram de que talvez fosse oportuno conversar com os tucanos… Parece a história do abraço do afogado. Calma, minha gente, há tempo para tudo. Há hora de conversar, hora de agir e hora de rezar.
Na ocasião da viagem que a presidente Dilma e os ex-presidentes fizemos juntos à África do Sul, em dezembro de 2013, para assistir ao funeral de Mandela, disse a todos que a descrença da sociedade no sistema político havia atingido limites perigosos. Ainda não era possível antecipar o tamanho da crise em gestação, mas não restava dúvida de que o país enfrentaria dificuldades econômicas e que essas seriam ainda maiores se as suas lideranças políticas não dessem resposta ao problema da legitimidade do sistema político. Disse também que todos nós ali presentes, independentemente do grau maior ou menor de responsabilidade de cada um, deveríamos nos entender e propor ao país um conjunto de reformas para fortalecer as instituições políticas. A sugestão caiu no esquecimento.
Naquela ocasião, como em outras, a resposta do dirigente máximo do PT foi, ora de descaso, ora de reiteração do confronto, pela repetição do refrão autorreferente de que antes dele tudo era pior. Para embasar tal despautério, o mesmo senhor, no afã de iludir, usou e abusou de comparações indevidas. Mais uma vez agora, sem dizer palavra sobre a crise moral, voltará à cantilena de que a inflação e o desemprego de hoje são menores do que em 2002, omitindo que, naquele ano, a economia sofreu com o medo do que poderia vir a ser o seu governo, um sentimento generalizado que, em benefício do país, meu governo tratou de atenuar com uma transição administrativa que permitiu ao PT assumir o poder em melhores condições para governar. Sobre a crise de hoje, nenhuma palavra…
Perguntado por uma repórter sobre se o ex-presidente Lula me havia enviado emissários para abrir um diálogo, respondi que ele não precisa de intermediários para isso, pois tem meus telefones. E condicionei o eventual encontro: desde que seja para uma discussão de agenda de interesse nacional e pública. Por que isso? Porque não terá legitimidade qualquer conversa que cheire a conchavo ou, pior, que permita a suspeita de que se deseja evitar a continuidade nas investigações em marcha, ou que seja percebida como uma manobra para desviar a atenção do país do foco principal, a apuração de responsabilidades.
Será que chegou o tempo de rezar pela sorte de alguns setores da vida empresarial e política? Talvez. Mas a hora para agir já não é mais, de imediato, do Congresso e dos partidos, mas, sim, da Justiça. Essa constatação não implica dizer um “não” intransigente ao diálogo. Decidam a Justiça, o TCU e o Congresso o que decidirem, continuaremos a ter uma Constituição democrática a nos reger e a premência em reinventar nosso futuro. Tomara que as aflições pelas quais passam o PT e seus aliados lhes sirvam de lição e os afastem da arrogância e do contínuo desprezo pelos adversários, até agora tratados como inimigos.
É hora de reconhecerem de público que a política democrática é incompatível com a divisão do país entre “nós” e “eles”. Para dialogar, não adianta se vestir em pele de cordeiro. Fica a impressão de que o lobo quer apenas salvar a própria pele. Mais ainda, passou da hora de o lulopetismo reconhecer que controlar a inflação e respeitar a Lei de Responsabilidade Fiscal nada têm a ver com neoliberalismo, senão que são condição para que as políticas sociais, tanto as universais como as específicas, possam ter efeitos duráveis.
Em suma, cabe aos donos do poder o mea-culpa de haver suposto sempre serem a única voz legítima a defender o interesse do povo.